Mostrando postagens com marcador Jorge Luis Borges. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Jorge Luis Borges. Mostrar todas as postagens
Marianne
Fui pesquisar sobre Jorge Luis Borges, que na matéria da Revista Veja sobre os gatos foi citado e encontrei alguns poemas de sua autoria que me chamou a atenção.


ARTE POÉTICA

[Tradução de Rolando Roque da Silva]

Mirar o rio, que é de tempo e água,
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que passam os rostos como a água.

E sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar, sentir que a morte,
Que a nossa carne teme, é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.

E ver no dia ou ver no ano um símbolo
Desses dias do homem, de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.

E ver na morte o sonho, e ver no ocaso
Um triste ouro, e assim é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes, pelas tardes, uma face
Nos observa do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nossa própria face.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.


UM CEGO

Não sei qual é a face que me mira
quando miro essa face que há no espelho;
e desconheço no reflexo o velho
que o escruta, com silente e exausta ira.
Lento na sombra, com a mão exploro
meus traços invisíveis. Um lampejo
me alcança. O seu cabelo, que entrevejo,
é todo cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
a superfície vã das simples coisas.
Meu consolo é de Milton e é valente,
porém penso nas letras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver meu rosto
saberia quem sou neste sol-posto.



A UM GATO

Não são mais silenciosos os espelhos
nem mais furtiva a alba aventureira;
és, debaixo da lua, essa pantera
que nos é dado ver de longe.
Por obra indecifrável de um decreto
divino, buscamos-te com vaidade;
mais remoto que o Ganges e o poente,
é tua a solidão, teu o segredo.
O teu lombo condescende à morosa
carícia da minha mão receosa.
Estás em outro tempo. És o dono
de um espaço fechado como um sonho.